Opinião

A dimensão humana da energia e a venda das refinarias da Petrobras

Reflexão sobre a visão atual da energia e do papel da Petrobras pela sociedade brasileira, e o impacto sobre o estágio de desinvestimento da companhia no refino

Atualizado em

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  • Por Fernanda Delgado e Carlos Arentz

Em 1984, foi publicado um trabalho do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos intitulado Uso de Energia - A Dimensão Humana[1]. Passados mais de 10 anos da crise do embargo do petróleo pelos países produtores de 1973, que provocou uma reviravolta na economia e mudou a noção da importância da energia, este estudo questionava se os efeitos daquela crise haviam sido superados.  Em uma abordagem inédita à época, concluiu que a maneira como uma sociedade entende o significado da energia afeta como esta sociedade toma decisões sobre a mesma. Assim, classificou quatro visões distintas da energia:

  1. Energia pode ser vista como um recurso estratégico, tendo como principal propriedade sua disponibilidade dentro do território de uma nação, cujo valor é prover segurança nacional nas dimensões econômica e militar, enfatizando os interesses do supridor e população nacionais;
  2. Energia pode ser considerada uma necessidade social, cuja principal propriedade é atender necessidades essenciais, enfatizando o valor da sua distribuição de forma equânime, garantindo o atendimento da população sem recursos financeiros;
  3. Energia pode ser vista como uma commodity, na qual a principal propriedade é o preço, definido pelo equilíbrio de oferta e demanda e o valor e interesses enfatizados seriam o atendimento dos agentes com capacidade financeira de participar deste mercado e
  4. Energia pode ser vista ainda como um recurso ecológico, cuja principal propriedade é a possibilidade de depleção vis a vis seu uso sustentável, dando ênfase ao impacto ambiental de sua obtenção, utilização e seu efeito sobre outros recursos naturais, enfatizando assim os interesses das gerações futuras.

É notável como estas visões da energia podem ser percebidas ao longo dos quase 70 anos de história do esforço exploratório e da produção de petróleo no Brasil.

A história da indústria petrolífera nacional se confunde com a própria história da Petrobras. Criada no esteio de intenso debate iniciado ainda nos anos  1930 e 40, passou pela dúvida da existência de petróleo no País, questionada em 1937 por Monteiro Lobato no livro o Poço do Visconde. Perpassou também pela necessidade de desenvolvimento da indústria petrolífera no Brasil, como condição de eliminar-se a dependência da importação de combustíveis. A Comissão de Constituição e Justiça do Congresso Nacional em 1948, discutiu proposta de anteprojeto de lei do Estatuto do Petróleo, que incentivava o desenvolvimento destas atividades por concessão seguindo tendências liberais. Em pleno desenvolvimento econômico à época, a demanda de combustível crescia, praticamente triplicando entre 1948 e 1950. Em 1951 é proposto um projeto de lei para a criação da Petrobras e após quase dois anos de disputas parlamentares, a lei é aprovada no Senado e sancionada em outubro de 1953. Esta sequencia de eventos históricos evidencia que a sociedade brasileira via a energia do petróleo como um recurso estratégico, fundamental à segurança nacional, e para garantir esta visão foi estabelecida uma empresa nacional do Estado como executora do monopólio estatal do petróleo nas atividades de exploração, produção, refino, transporte e comércio exterior.[2]

Anteriormente ainda ao processo de criação da Petrobras, os preços dos combustíveis já eram determinados pelas várias instâncias governamentais, sendo influenciados por fatores políticos, sociais e econômicos. O Decreto-Lei nº 395, de 29 de abril de 1938, estabeleceu como de utilidade pública o abastecimento nacional de petróleo e seus derivados e a primeira política nacional de preços de combustíveis foi definida pela Conselho Nacional do Petróleo – CNP, órgão criado pela mesma lei. Com o tempo, estes preços sofreram uma série de ajustes por força de lei. Em especial a partir dos anos 60, a estrutura de preços passou a procurar contemplar a remuneração dos maiores custos do abastecimento do País, marcantemente petróleo importado e ainda compensar os custos operacionais da Petrobras, responsável por esta importação e distribuição. Somente em função destes aspectos, foram estabelecidos diversos instrumentos de vida variável, como o Fundo Especial de Reajuste de Estrutura de Preços de Combustíveis e Lubrificantes – FER. Considerando a magnitude dos valores envolvidos no negócio e sua importância para o desenvolvimento do País, os preços dos derivados de petróleo passaram também a incorporar impostos de cunho distributivo de renda, seguindo as mudanças no sistema tributário nacional como PIS/PASEP, Finsocial entre outros. Adicionalmente a estes, entre 1966 e 1997, diversas tarifas específicas para os preços de combustíveis foram criadas, como o Imposto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis – IVVC e outros para compensar as diferenças de demanda sob aspecto social. Para permitir a gestão destes montantes e do citado FER, surgem uma série de contas compensatórias como a Conta Petróleo, Conta Álcool e Conta Derivados. Nesta abordagem fica clara a visão da energia como necessidade social, onde a lista de tarifas visava atender necessidades essenciais, procurando atender uma distribuição mais equânime dos resultados desta cadeia produtiva.

Este histórico, contudo, conduziu a uma precificação descolada das expectativas da sociedade quanto a valores que se aproximassem de preços de mercado, ainda mais em um período em que a produção de petróleo no País se expandia. Este processo levou a questionamentos quanto à necessidade da manutenção de tal estrutura de precificação, para que a Petrobras pudesse realizar o papel que lhe havia outorgado o Estado. A sociedade passou a entender que a abundância do petróleo favoreceria um atendimento de suas demandas pelo simples equilíbrio das forças de mercado, com o aumento da oferta propiciando preços menores de combustíveis. A sociedade brasileira passou a ver a energia do petróleo como uma commodity.  Consequência desta mudança, a Emenda Constitucional nº 9 de 1995, decreta o fim da exclusividade da Petrobras no exercício do monopólio da União, a Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, define a abertura do setor e a liberação gradual dos preços passou a ser política governamental, eliminando os subsídios cruzados.

Passando a atuar em um ambiente diferente daquele para o qual foi criada, a Petrobras se adapta ao cenário nacional e internacional, e passa a atuar buscando atender interesses dos diversos stakeholders, contemplando outros tópicos sensíveis, como meio ambiente, diversificando sua carteira com investimentos em energias renováveis, biocombustíveis e iniciativas de sustentabilidade. Neste movimento, que seguia os de outras empresas globais do setor, claramente incorporou a visão da energia como recurso ecológico, no caso particular do petróleo, com impacto ambiental e finito, procurando atender os interesses das gerações futuras.[3]

Este breve histórico mostra que a Petrobras teve sua trajetória pautada pelas mudanças da visão da sociedade quanto a energia. Este processo foi determinado, e continua sendo, pelos representantes da sociedade nos diversos organismos governamentais, como o MME, ANP, CADE entre outros. Uma das mais recentes mudanças de foco desta visão, foi expressa no Termo de Compromisso de Cessação de Prática com o CADE, que intenciona promover a abertura do mercado de refino. Mesmo antes deste compromisso, a Petrobras já havia declarado a intenção de oferecer parcerias em algumas refinarias e logística associada, em 2017[4], tendo ratificado esta posição em fato relevante de 26/04/2019, anunciando a venda de refinarias[5], declaradamente seguindo posicionamento da ANP e recomendações do CADE. Este processo foi amplamente divulgado sendo de notório conhecimento do público[6] e dos organismos governamentais, [7] desde, no mínimo, meados de 2019.

Contudo, neste momento em que o desinvestimento se aproxima de etapas decisivas, outros representantes da sociedade arguem que a forma do processo ignorou etapas legais, havendo requerimento de aprovação do Congresso para sua conclusão. A visão de energia que predomina neste movimento de consulta aos representantes legislativos nitidamente evoca a preocupação quanto ao recurso estratégico com nuances da visão como necessidade social.

Não é a intenção questionar a legitimidade da interpretação legal, mas sim ponderar sobre o instante desta ação e o que o Brasil espera da Petrobras e o retrocesso econômico que esta ação pode significar. A empresa se adaptou sob diversas visões da sociedade, buscando uma posição mais sustentável, atendendo às necessidades energéticas – em hidrocarbonetos – do país e garantindo o abastecimento nacional. E dentro deste planejamento, em especial destaque ao plano de desinvestimentos do parque de refino, conduziu um processo transparente e público que atraiu diversos interessados de vários países. A potencial interrupção deste processo, por mais que seja possível, ocorre em momento extremamente inoportuno. Este eventual resgate de visões anteriores da energia pela sociedade, potencialmente invalidará o planejamento estratégico da Petrobras. Impactará a credibilidade das ações da sociedade brasileira e a confiança dos mercados investidores, não só na Petrobras, mas na economia nacional como um todo. Além de pôr em risco a própria capacidade financeira da empresa, que precisará revisar sua carteira de investimentos, enquanto esta sequência de fatos potencialmente minará seu valor de mercado.

A sociedade e o mercado aguardam, há muito, esses desinvestimentos, que guardam três características essenciais para o desenvolvimento do setor petrolífero nacional hoje: demostram a real quebra do monopólio da empresa abrindo caminho para um mercado mais plural e competitivo; representa possibilidades reais de entrada de novos players refinadores e distribuidores – entre outros agentes - no mercado com a criação de novos postos de trabalho e geração de renda, e por fim; significam incremento de caixa para a Petrobras, que pode com isso tocar seu planejamento estratégico, focando em seus ativos de classe mundial e no incremento da produção nacional de cru.

 

[1]National Research Council. 1984. Energy Use: The Human Dimension. Washington, DC: The National Academies Press. https://www.nap.edu/catalog/9259/energy-use-the-human-dimension

[2] https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/publicacoes-da-consultoria-legislativa/areas-da-conle/tema16/2016-4681_politica-de-precos-e-refino-de-petroleo-no-brasil_paulo-cesar

[3] Petrobras sobre refino e gás natural   https://mz-prod-cvm.s3.amazonaws.com/9512/IPE/2020/2b09a9dc-b322-438b-9747-302759974929/20200918203906937776_9512_794161.pdf

[4]https://www.agenciapetrobras.com.br/upload/documentos/apresentacao_9nXR1QKfNX.pdf https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKBN1CV2Y4-OBRTP?feedType=RSS&feedName=topNews

https://g1.globo.com/economia/noticia/petrobras-estuda-modelo-de-parceria-e-venda-de-fatia-de-4-refinarias.ghtml

[5] https://mz-filemanager.s3.amazonaws.com/25fdf098-34f5-4608-b7fa-17d60b2de47d/comunicados-ao-mercadocentral-de-downloads/d6ea7727cc35cea907bb18a29fba6013755a8f2fe016a96826954bc90e9e271e/petrobras_aprova_novas_diretrizes_para_a_gestao_do.pdf

[6] https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/11/22/petrobras-avanca-em-1a-etapa-de-processo-de-venda-de-refinarias.ghtml

[7] https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-410/topico-472/Fatos%20Relevantes%20-%20Novembro_2019.pdf

 

Carlos Arentz é engenheiro químico (UFRJ), Mestre em Engenharia de Produção – Logística (UFSC), Doutor em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (UFRJ). Trabalhou na Petrobras por 33 anos, como engenheiro de processo, nas áreas de engenharia ambiental, conservação de energia, avaliação de desempenho econômico, marketing de gás e energia e comercialização de energia, com 10 anos em refinarias e ocupando diversos cargos gerenciais. Atualmente é Professor Adjunto da Faculdade de Engenharia da UERJ e consultor em energia.

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