Opinião

As dificuldades inovativas do programa RenovaBio

Obstáculos para implementar o programa de incentivo ao maior uso dos combustíveis renováveis e sugestões para ultrapassá-los no cenários atual

Atualizado em

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  • Por Fernanda Delgado e Márcio Lago Couto

O Programa

O programa RENOVABIO, criado pelo Ministério das Minas e Energia - MME, é uma inovação no mercado nacional, considerado um passo importante para o desenvolvimento do mercado de biocombustíveis e estímulo à captura de carbono. Ele visa aumentar a competitividade dos combustíveis renováveis, reduzindo as emissões e auxiliando no cumprimento das metas internacionais assumidas no acordo de Paris[1].

O objetivo do programa, de acordo com o MME, é retirar até 600 milhões de toneladas de carbono da atmosfera nos próximos dez anos. A lei que implementa o programa é fruto das demandas do setor de biocombustíveis por uma política que estabeleça regras ainda mais claras e mais previsíveis sobre o papel do etanol na matriz energética nacional. Por meio da certificação da produção de biocombustíveis serão atribuídas notas diferentes para cada produtor e importador de biocombustível com direito a créditos de descarbonização, os chamados CBIOs. No esteio dos benefícios ao meio ambiente está a redução ao consumo dos derivados de petróleo (diesel e gasolina).

O programa tem como ponto nevrálgico estabelecer um mercado de CBIOs para financiar a expansão do uso de energias limpas na matriz energética brasileira. O início do funcionamento do mercado, previsto para 2019, teve que ser adiado para 2020, face as dificuldades iniciais para a certificação dos produtores de biocombustível e na emissão dos certificados CBIOs (além da crise da Covid-19 a ser abordada adiante).

De forma rápida, o CBIO é um instrumento financeiro, registrado sob a forma escritural, para fins de compra e venda de créditos de descarbonização e também para a comprovação das metas compulsórias para cada um dos distribuidores de combustíveis. A estimativa da quantidade de CBIOs a serem emitidos deverá considerar o volume de biocombustível, produzido ou importado, e comercializado pelo emissor primário.

O mercado deverá funcionar, a princípio, com a participação de, pelo menos, três agentes: o produtor de biocombustível, responsável pela oferta dos CBIOs ao mercado, o agente de investimento e custódia (B3, bancos, corretoras, entre outros) e o comprador compulsório (distribuidoras de combustíveis).

As metas de compra do CBIO serão definidas pelo Conselho Nacional de Política Energética - CNPE, a partir das simulações feitas pelo modelo de projeção, sendo atribuídas a cada distribuidora de combustível em função do market-share da distribuição do ano anterior. Esse modelo probabilístico considera cenários de produção, indicadores de qualidade e de demanda do mercado, sendo as metas geradas para o exercício seguinte em função dos resultados do ano anterior.

O estabelecimento das metas compulsórias incorpora também os objetivos de aumento da participação dos combustíveis limpos na matriz energética, para um período de 10 anos, para atender as metas de redução de emissão de carbono estabelecidas em acordos internacionais (COP-21).

Há, nesse modelo, um legítimo e original esforço do governo na direção de um programa de descarbonização da matriz de transportes, à guisa de programas amplamente implementados em outras economias e catapultadores de modelos contemporâneos de mercados de crédito de carbono.

O cenário atual

Cumpre lembrar que desde o inicio de março de 2020 a redução nos preços do petróleo, resultado das disputas de market-share entre OPEP e Rússia, e o impacto da COVID-19, que impôs o isolamento social, criaram um ambiente de incerteza para a economia brasileira e mundial, interrompendo a trajetória de crescimento econômico, o que deve resultar em uma profunda recessão.

O relatório de junho de 2020 do FMI sobre a economia mundial estima uma retração de -4,9% na economia global para o ano de 2020. Para o Brasil, as  estimativas apontam uma queda de -9,1% na economia, apesar das expectativas do Boletim Focus, publicado pelo Banco Central no último dia 26/06, indicar uma retração de aproximadamente -6,5%.

A estimativa de impacto da retração da atividade econômica sobre o mercado de distribuição de combustíveis no Brasil, projetada para o ano de 2020, foi revisada pela EPE para diferentes cenários, estimando :

  • No diesel, as projeções de consumo variam de 52,9 a 55,9 bilhões de litros em 2020, com quedas de -8% (pior cenário) a -2% (melhor);
  • No ciclo Otto, as projeções da EPE são de uma retração entre  -8% a -17% em 2020; e
  • As vendas de QAV, em 2020, podem retrair de 34% a 60%.

Com base nessas projeções, algumas dúvidas tem sido levantas sobre as metas estabelecidas para o Renovabio em 2020. Uma delas é que as metas não incorporam plenamente as incertezas e as oscilações de mercado com os impactos de consumo, e outras formas de oscilação na demanda. Assim, os impactos da Covid-19, por exemplo, alteraram a dinâmica do consumo de combustíveis fósseis – gasolina C e diesel - e por conseguinte a de biocombustíveis, gerando incertezas quanto às possibilidades de cumprimento das metas de emissão de CBIOs.

Ciente desses efeitos, a ANP publicou a Consulta Pública n° 94, de 05/06/2020, para revisar a “definição das metas compulsórias anuais”, com proposta de redução de 29 milhões de CBIOs para 14,5 milhões para as distribuidoras em 2020: “Dada a gravidade da situação criada pela pandemia da COVID-19, sugere-se reduzir em 50% os valores das metas individuais compulsórias por distribuidor de combustíveis”, para uma nova meta de 14.534.115 de CBIOs para a meta agregada (2019 e 2020).

Além dos efeitos sobre a demanda, o mercado também enfrenta desafios do lado da oferta.  Até junho de 2020, haviam sido emitidos cerca de 800 mil CBIOs, além de um adicional de 2 milhões de pré-CBIOS. Esse volume de CBIOs no mercado exigirá a oferta de, pelo menos, cerca de 11 milhões de CBIOs adicionais, para atender apenas as metas obrigatórias no segundo semestre de 2020.

Nesse cenário, a falta de garantias de que as usinas irão conseguir colocar no mercado a quantidade de CBIOs mínima necessária para atender a demanda compulsória das distribuidoras, além da demanda dos investidores voluntários, aponta para um déficit entre a oferta e a demanda de CBIOs, com os seguintes riscos:

  • a redução da janela de compra dos CBIOs pelas distribuidoras e a competição com outros investidores poderá resultar em variações artificiais e no aumento da volatilidade no preço dos CBIOs;
  • o repasse das distribuidoras para os preços dos combustíveis do custo total dos CBIOs, projetados para o ano de 2020, poderá levar a aumentos expressivos dos preços dos derivados, com impactos na inflação e nos custos de pequenas e médias empresas, já pressionadas pela queda de demanda da economia; e
  • nas distribuidoras menores, eventuais dificuldades de repasses para os preços desses custos adicionais poderá colocar em risco a própria distribuição de derivados em regiões mais distantes ou em mercados regionais.

Vale mencionar que a volatilidade nos preços dos ativos de créditos ambientais também tem sido objeto de debate em outros mercados. A mudança recente (novembro de 2019) na regulação do Low Carbon Fuel Standard – LCFS[2], da Califórnia, ampliou o uso do mecanismo de regulação por price-cap, ao afirmar que “ao proibir transferências de crédito acima desse preço máximo, as entidades reguladas podem avaliar claramente seus custos de conformidade, protegendo consumidores e investidores contra picos de preço de crédito e instabilidade provocada por uma potencial escassez de crédito de LCFS” [3],[4].

Para suportar essa proposta de alteração foi apresentado o estudo sobre a  “ECONOMIC ANALYSIS – SENSITIVITY RISK SCENARIOS[5], para o mercado de LCFS da Califórnia, com as seguintes conclusões sobre a necessidade de estabilidade nos preços dos ativos: Um ambiente estável é propício para as empresas aumentarem os investimentos em instalações com uso intensivo de capital e projetos de pesquisa e desenvolvimento que são essenciais para o aumento da inovação no setor de combustíveis com baixo carbono. Além disso, um preço estável de LCFS incentivará uma maior adoção de veículos de combustível alternativo que possam tirar vantagem do valor criado pelos créditos de LCFS para reduzir os custos de combustível; e se espera que a maior certeza nos créditos de LCFS aumente potencialmente o investimento e o crescimento no setor de baixo carbono. Isso pode levar ao crescimento de negócios já existentes ou à criação de novos participantes nesse setor. A criação de empresas pode ocorrer dentro ou fora do estado, pois o LCFS é neutro para o local da produção.

Essas alterações na regulamentação, adotadas em um mercado mais maduro, deve servir de lição para o mercado brasileiro, ainda incipiente, e sem uma regulamentação definitiva, que deve buscar:

i. Dar transparência a oferta de novos certificados, de modo a conferir previsibilidade para o planejamento das empresas que irão ofertar e demandar CBIOs;

ii. Mitigar riscos de assimetrias informacionais, impedindo que agentes de mercado sejam capazes de manipular a oferta de papéis em busca de expectativas de ganhos especulativos;

iii. Regulamentar a estrutura tributária, de modo a impedir que a tributação dos ativos do novo mercado amplie e/ou crie distorções na formação de preço dos combustíveis;

iv. Regulamentar um modelo de price-cap, e outros mecanismos regulatórios, capazes de corrigir as falhas de mercado nos preços dos papéis, aproveitando as lições da recém alterada regulamentação do mercado de LCFS da Califórnia, que estende para todo o mercado o uso do price-cap na compra e venda de ativos, explicada assim pelo regulador: e

v. Regulamentar as regras de certificação, distribuição e controle da oferta de papéis dando previsibilidade aos participantes do mercado.

Além disso, vale mencionar que é importante também ampliar os estudos de impacto da volatilidade nos preços dos CBIOs em outros mercados, uma vez que, ao adicionar um novo item de receita, com preços variáveis, os produtores de biocombustíveis irão ajustar o seu mix de  produção de açúcar e etanol, transferindo, entre mercados, oscilações dos preços internacionais do açúcar e aumentando a possibilidade de arbitramento entre preços. Ao mesmo tempo, incorporar ao preço das distribuidoras um novo custo, de baixa transparência e alta volatilidade, será mais um fator de imprevisibilidade no mercado de distribuição de combustível, aumentando a complexidade das escolhas interenergéticas para consumidor.

Dada a importância do preço dos derivados na composição da inflação, e seus impactos na economia, parece arriscado incorporar os efeitos de uma grande volatilidade de preços dos CBIOs no preço dos combustíveis, o que poderá resultar na perda de transparência obtida com a paridade do preços do petróleo, no Brasil, aos preços internacionais. Finalmente, a contribuição ao aumento do nível de incerteza na economia reduz, inversamente ao proposto no programa, os incentivos aos investimentos em refinarias e usinas, uma vez que a sinalização de preços futuros é fundamental para a decisão de investimento.

Conclusão

Há muitos exemplos de dificuldades de se estabelecer mercados de créditos de natureza similar, em especial o de crédito de carbono, e não seria possível encerrar todas essas dificuldades nesse artigo, nem prover direcionamentos para todos esses desafios.

Adicionalmente, também são comuns as experiências do regulador brasileiro estabelecer normas e modelos, que sem o tempo de implementação adequado e os ajustes necessários ao seu pleno funcionamento, depois de iniciado elevam fortemente os custos do ajuste.

Diante de todas essas dificuldades, ampliadas pela COVID-19, mas ainda assim normais ao estabelecimento de um novo mercado de crédito, é sugerido ao Governo propor os ajustes necessários para o aperfeiçoamento do modelo de projeção das metas, para dar transparência à oferta dos CBIOs, e discutir a necessidade de inclusão de mecanismos regulatório necessários para impedir a manipulação do mercado.

O risco de se abrir um mercado, com desequilíbrios entre demanda e oferta, com o enforcement de metas não realistas, com a falta de regulamentação adequada para dar a devida transparência aos mecanismos de preços dos ativos, poderá resultar, eventualmente, em uma ampla judicialização, por parte de investidores, das distribuidoras e, até mesmo, dos produtores, o que pode vir a colocar em risco o futuro de um mercado ainda incipiente e a efetividade e sucesso do programa que faz parte de um objetivo maior do governo em direção à uma matriz energética ainda mais limpa.

 

[1] [http://www.mme.gov.br/web/guest/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/acoes-e-programas/programas/renovabio]

[2] https://ww3.arb.ca.gov/regact/2019/lcfs2019/res19-27.pdf

[3] https://ww3.arb.ca.gov/regact/2019/lcfs2019/fro.pdf

[4] https://www.cleanenergylawreport.com/california/carb-attempts-to-contain-lcfs-credit-prices/

[5] https://ww3.arb.ca.gov/regact/2019/lcfs2019/appb.pdf

 

 

Fernanda Delgado é pesquisadora Sênior da FGV Energia – Doutora em Planejamento Energético e Mestre em Engenharia de Produção. Professora afiliada à Escola de Guerra Naval com dois livros publicados sobre Petropolítica. Longa experiência em planejamento estratégico, fusões e aquisições, análise de negócios, avaliação econômico-financeira e inteligência competitiva no setor de Óleo e Gás e Biocombustíveis.

 

 

Márcio Lago Couto é Doutorando em Administração na EAESP, Mestre em Engenharia de Produção pela UFRJ, com especialização no Programa de Gestão Estratégica da INSEAD da França, Pós-Graduação em Finanças pela FGV e pelo IBMEC e economista. Professor em Estratégia nos cursos da FGV, COPPE, PUC e ESPM.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_raw_html]JTNDZGl2JTIwcm9sZSUzRCUyMm1haW4lMjIlMjBpZCUzRCUyMm5ld3NsZXR0ZXItb3Bpbmlhby02ZWY3ZjBkYWRiMWJmYzA0YTA5MyUyMiUzRSUzQyUyRmRpdiUzRSUwQSUzQ3NjcmlwdCUyMHR5cGUlM0QlMjJ0ZXh0JTJGamF2YXNjcmlwdCUyMiUyMHNyYyUzRCUyMmh0dHBzJTNBJTJGJTJGZDMzNWx1dXB1Z3N5Mi5jbG91ZGZyb250Lm5ldCUyRmpzJTJGcmRzdGF0aW9uLWZvcm1zJTJGc3RhYmxlJTJGcmRzdGF0aW9uLWZvcm1zLm1pbi5qcyUyMiUzRSUzQyUyRnNjcmlwdCUzRSUwQSUzQ3NjcmlwdCUyMHR5cGUlM0QlMjJ0ZXh0JTJGamF2YXNjcmlwdCUyMiUzRSUyMG5ldyUyMFJEU3RhdGlvbkZvcm1zJTI4JTI3bmV3c2xldHRlci1vcGluaWFvLTZlZjdmMGRhZGIxYmZjMDRhMDkzJTI3JTJDJTIwJTI3VUEtMjYxNDk5MTItOCUyNyUyOS5jcmVhdGVGb3JtJTI4JTI5JTNCJTNDJTJGc2NyaXB0JTNF[/vc_raw_html][/vc_column][/vc_row]

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