Opinião

O desafio da indústria automobilística na década de 2020

A indústria automobilística mundial conta retomar o vigor, reproduzindo o passado em versão elétrica. A queda das vendas, a pandemia e as eventuais rupturas não estão nas projeções.

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Para a indústria automobilística, não faltam desafios: eletrificar o propulsor, digitalizar e ampliar a conectividade do veículo, além de diminuir seu preço de venda e, assim, convencer o cliente a trocar de carro. Um derradeiro desafio será crescer num mercado que se aproxima do esgotamento. Talvez estejamos a caminho do fim da era dos automóveis, o que não consta nas projeções, que também não consideram o passado recente, nem a eventual mudança no padrão de mobilidade. A década que se encerra e a pandemia marcam uma reversão das tendências que pode ser definitiva e, por isso, merecem atenção.

Até bem pouco tempo, o crescimento das vendas de veículos novos ainda era expressivo. No mundo, entre 1960 e 1990, a frota se multiplicou por quase cinco: pulou de 127 milhões de unidades para 583 milhões. Em 2010, a frota atingiu um bilhão de unidades, quase que dobrando em vinte anos. O ganho em mobilidade para famílias e empresas foi inigualável na história moderna, enquanto o perfil rodoviário dos transportes se tornou dominante. Somem-se os efeitos multiplicadores das despesas com a fabricação, venda, uso e manutenção dos veículos automotivos, além das estradas e da logística de abastecimento, e tem-se a maior indústria do século passado.

Atualmente, estima-se que existam 1,4 bilhão de veículos registrados, o que inclui todos os tipos de automóveis, vans, ônibus e caminhões, mas exclui aqueles de duas rodas como motocicletas e lambretas. Também não incluem as bicicletas, os patinetes e skates que estão sendo rapidamente eletrificados e responsáveis por um ganho de mobilidade individual completamente distinto. Os dados são aproximados, uma vez que recensear a totalidade das unidades circulando não parece ser tarefa fácil. Existem veículos antigos em serviço nos mais distantes confins do globo, em muitos países não existem associações profissionais que coletem a informação, as classificações por tipo são as mais diversas, as fontes divergem e não se tem o tamanho da frota de forma exata.

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 Apesar disso, a indústria pode ser acompanhada pelas informações da International Organization of Motor Vehicle Manufactors (conhecida pela sigla OICA em francês), fundada em 1919 e sediada em Paris. A instituição reúne as associações nacionais dos fabricantes e dispõe do banco de dados de acesso público mais conhecido da indústria. As organizações multilaterais, como a Agência Internacional de Energia, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Mundial fazem uso dos números publicados pela OICA.

Com base neles, durante a última década, a evolução da indústria pode ser vista pelo Gráfico 1. O dado diz respeito à produção anual de veículos e ela partiu de 77,6 milhões, em 2010, para alcançar um máximo de 97,3 milhões, em 2017. O aumento de quase vinte milhões de unidades em sete anos poderia sugerir uma década brilhante, mas, no final, em 2019, a atividade estava em queda: 92,2 milhões de veículos foram fabricados.

Os números mostram que o crescimento perdeu força ao longo do período. Nos três anos entre 2010 e 2012, a variação média foi de 4% positiva, enquanto no último triênio da década (2017, 2018 e 2019), a média foi negativa e de 1% ao ano. Taxas anuais de incremento entre 2 e 3% ficaram para trás e, no final, o medíocre desempenho da economia global foi responsável, em parte, pela queda da produção. Contudo, a acentuada reversão da tendência pode ser também prenúncio da mudança dos tempos. Afinal, além de profundamente cíclico, o setor é o retrato do capitalismo industrial do século XXI.

Gráfico 1: Veículos produzidos no mundo, por ano, entre 2010 e 2020 (x 1.000)

Fonte: OICA, Production Statistic

 

Mais recentemente, ao reduzir contatos e deslocamentos, o combate à pandemia teve um impacto negativo e significativo que pode ser visto no Gráfico 1. Em 2020, foram fabricados 77,6 milhões de veículos segundo as informações da OICA, número muito próximo do que fora fabricado no início da década e um quinto a menos do alcançado pela indústria em 2017. Depois deste último pico da atividade, o declínio se impôs. Em relação a 2019, a variação foi de aproximadamente 16%; uma queda e tanto em período tão curto, mas, em 2020, sublinhe-se, a contração superveniente decorreu de um fator completamente exógeno: a Covid-19.

Frente a esse histórico adverso, vale segmentar um pouco os números e observar as diferentes dinâmicas. A leitura da Tabela 1 revela o que aconteceu nos mercados tradicionais, onde recordes de produção se sucederam na década passada. A produção japonesa alcançou seu máximo em 2012, com 9,9 milhões de veículos fabricados. Quatro anos depois, em 2016, o Japão produzia 9,3 milhões de veículos, 6,7% a menos e, em 2019, 9,7 milhões, ainda 2,6% menos que o pico de 2012. A partir do desempenho anterior, nada parece sugerir que o país supere a marca de dez milhões de unidades anuais na presente década e, para indústria nipônica, a manutenção deste patamar já será uma prova de imensa competência empresarial.    

Tabela 1:Produção de veículos na Europa, nos EEUU e no Japão


 
 

Fonte: OICA, Production Statistic

 

Nos Estados Unidos, por sua vez, a produção de veículos automotivos chegou ao máximo um pouco depois, em meados da década. Em 2016, foram fabricados 12,2 milhões de veículos no país. O degrau atingido já em 2015, contudo, não se sustentou e, em 2019, a produção registrou 10,9 milhões de unidades; caiu 10,5% em comparação ao pico. O impacto da pandemia contraiu a produção local em 27,5% comparado a 2016; apenas 8,8 milhões de veículos foram fabricados então. Mesmo que a retomada seja consistente, também nos EEUU, o pico de produção parece ter ficado para trás. As vendas apontam na mesma direção, como pode ser visto no Encarte a seguir.

Encarte sobre as vendas de automóveis nos Estados Unidos
As vendas anuais de veículos retratam com nitidez o desempenho da economia dos Estados Unidos. Os dados são fornecidos pelo US Bureau of Transportation Statistics e são facilmente acessíveis pela internet [1]. Recuando mais de quarenta anos, em 1978, enquanto o segundo “choque” do petróleo sinalizava o fim da prosperidade do pós-guerra, aproximadamente quinze milhões de veículos novos foram comprados pelos americanos.
Talvez ainda mais inesperado para quem profetizava o fim da indústria automobilística norte-americana desde a década de 1970, o último pico nas vendas ocorreu não faz muito tempo. Em 2015 e em 2016, elas se aproximaram a 18,5 milhões de unidades anuais. Em mais de um século de história, nunca tinham sido vendidos tantos veículos automotivos nos Estados Unidos e a novidade foram os SUVs, que alavancaram o mercado.
Em 2020, com a pandemia, a contração foi abrupta e não mais que 14,5 milhões de unidades foram comercializadas; um patamar inferior às vendas do início da série, ao primeiro pico registrado em 1978. Depois do tombo, recolocar em plena operação o setor não tem sido tarefa simples. Em 2021, a expectativa de retomar ao nível de vendas pré-pandemia não se realizou e a meta acabou postergada para o ano que se inicia.
Por fim, ao levar em conta a população ficará ainda mais evidente, além dos ciclos, o esgotamento do mercado. Comparando dois bons períodos, tem-se que o patamar do índice de venda per capita de carros novos, entre 2015 e 2017, foi metade daquele verificado entre 1965 e 1968. Ao longo das décadas sucedem-se marés descentes e montantes, mas, a tendência revelada pelo índice per capita é de clara queda. O aumento da vida útil dos veículos e as seis recessões, nesse longo intervalo de tempo, mostram que, a cada recuperação, as condições se fazem mais difíceis em termos de vendas e emprego na indústria.[2]

Na Europa (dos 15), a produção atingiu o máximo em 2017: 14,7 milhões de unidades[3]. Entre os três mercados, é aquele aonde tudo começou, com maior produção própria e o último a alcançar seu pico. Além disso, por um certo tempo, o “Velho Continente” sustentou o patamar de quatorze milhões de veículos fabricados anualmente: entre 2015 e 2018. A contração em 2019, 13,6 milhões de veículos, nem foi grande frente ao visto nos EEUU e Japão, mas, a pandemia não deixa dúvida sobre a queda: em 2020, apenas 10,2 milhões de veículos foram fabricados, ou 30,8% a menos que em 2017.

A sucessão de recordes e reversões nos grandes centros, Japão, Estados Unidos e Europa, não é mera coincidência e, sim, uma possível evidência do que vem por aí. Além da retomada, a transição energética talvez exija uma nova mobilidade, uma transformação radical distante da presente realidade. O agregado dos três mercados sintetiza o desafio: depois de 2016, a produção anual só fez cair, em 2019, ela estava 5% menor e, em 2020, um quarto menor. A pandemia acentuou a queda e, até aqui, é importante destacar, esse decréscimo não foi compensado pelos mercados emergentes, como seria esperado.

No Gráfico 2, encontra-se a produção de veículos segmentada geograficamente em dois grupos. Pontilhada, a curva reflete a soma dos três mercados anteriores (os mais tradicionais e centrais) e, em linha contínua, a soma dos dois países que mais cresceram nos últimos vinte anos na periferia: a China e a Índia.

Gráfico 2: Veículos produzidos nos países desenvolvidos (EEUU, EU e Japão) e nos emergentes (China e Índia), 2010 a 2020, (x 1000)

Fonte: OICA, Production Statistic, ver Anexo

 

Entre 2010 e 2019, na Europa, nos EEUU e no Japão, a produção permaneceu superior àquela dos dois países asiáticos, mas, os números se aproximaram ao longo da década. A curva pontilhada parece saturar o crescimento e atingir seu platô entre 2014 e 2019, enquanto a curva em linha contínua chegou a seu pico em 2017 e, por fim, decorrência do impacto da Covid-19, acaba pouco acima: em 2020, 28,6 milhões de veículos foram produzidos na China e na Índia, versus 27,1 milhões nos países “Ocidentais” e no Japão; foi um marco para os dois países “emergentes”; pela primeira vez, um milhão e meio a mais de unidades.

Por si só, o tamanho a que chegou a produção chinesa impressiona. Em 2017, quando ambas atingiram os derradeiros máximos, na China, foram fabricados o dobro de veículos do que na Europa: 29 milhões contra 14,3 milhões. No mesmo ano, isso representou mais do triplo do que foi fabricado nos Estados Unidos. A rápida ascensão chinesa, como no caso japonês e coreano anteriormente, resultou da emergência de uma classe média pujante e de uma efetiva política industrial.

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O movimento retrata um fenômeno amplamente estudado: o deslocamento dos ativos produtivos em direção aos dois mercados que alavancaram as vendas nos últimos anos e nada indica que deve cessar. A presunção, porém, é ainda maior: que a pandemia, a transição energética, a eletrificação da frota e até mesmo a combinação das três não interrompam, ou alterem, a trajetória de crescimento. Segundo as previsões correntes, a indústria retomará o fôlego anterior.

Um exemplo: segundo as projeções da Agência Internacional de Energia, as vendas mundiais alcançarão entre 138 e 161 milhões de veículos em 2030 [4]. O primeiro número corresponde ao cenário no qual um maior esforço na redução das emissões é feito, no segundo, tudo fica como está em termos de políticas públicas. Tomando o valor médio, 149,5 milhões de veículos por ano, comparado aos 97 milhões de veículos fabricados em 2017, último recorde histórico, o incremento será de nada menos que 54%. Em comparação com 2019, antes da pandemia, a produção mundial da indústria automobilística será 62% maior em 2030.

O estoque de veículos que quase dobrou entre 1990 e 2010, de acordo com esses números, deverá dobrar nos vinte anos seguintes e, assim, estará em torno de dois bilhões de unidades em 2030. O que não cresceu na década passada, quando se contavam, ao final, 1,4 bilhão de veículos em circulação, crescerá nesta década. Supõe-se, assim, que a retomada da produção deverá ganhar velocidade em qualquer dos dois cenários anteriores.

Em dez anos, significará um salto e tanto, que se somará à eletrificação dos motores, digitalização dos veículos e conectividade da condução. E, para que se verifique, além do preço diminuir, terá de ocorrer a inversão da tendência de queda da produção constatada. Mais uma vez, o ponto de saturação das vendas de veículos automotivos seria postergado, assim como o esgotamento do atual padrão de mobilidade individual. É nisso que apostam as projeções da AIE.

Mas não só elas. A importância econômica e a profunda transformação da frota justificam a atenção concedida aos estudos do setor. As grandes firmas de auditoria (EY, DBO, Deloitte, KPMG e PwC) e empresas de consultoria (Bain Co, IHS/SP, BCG, McKinsey, Booz Allen e Fitch) investem no assunto e não faltam estimativas[5]. Todas supõem um incremento entre 2 e 3% ao ano ao longo da década para o setor automobilístico em suas projeções, não consideram qualquer ruptura, ou um cenário de estagnação das vendas.

Entretanto, as menores taxas de crescimento mundial, década após década depois de 1970, a natureza estrutural da crise de 2008, que inaugurou a fase descendente do longo ciclo econômico, o esgotamento do regime de produção em torno do automóvel e do petróleo, evidente na década passada, e as mudanças climáticas se somam de forma muito pouco favorável; alguém duvida?

Previsões como essas, em que as vendas dos veículos automotivos retomarão o vigor pretérito, agora na versão elétrica, sem mudanças nos modos e meios de transporte, podem e devem ser questionadas. Não seriam elas reflexos da própria inércia estrutural, de trancamentos tecnológicos e da resistência de interesses estabelecidos contra transformações mais agudas? Profundamente cíclica e eixo central do capitalismo no século XX, a indústria automobilística acredita na recuperação das vendas e reversão das tendências, a despeito do desempenho recente, de eventual ruptura ou urgência climática por mudança.

Posto isto, daqui a dez anos, não se pode descartar que a produção mundial esteja em torno de cem milhões de veículos anualmente, todos os tipos incluídos. Se este for o caso, como dito no começo, o desafio das montadoras não se resume a eletrificar, digitalizar e conectar a frota. É muito maior: trata-se do fim do carro como ícone da sociedade, em meio a uma radical transformação nos padrões de mobilidade. Este final pode não estar tão longe, mas, como visto, ainda não entrou nas projeções.

 

Anexo

Produção de veículos na China e Índia (x1000)

Fonte: OICA, Production Statistic, ver Anexo

 

 

[1] Annual U.S. Motor Vehicle Production and Domestic Sales | Bureau of Transportation Statistics (bts.gov)

[2] Bill Dupor, “The Cyclicality of the Aging U.S. Motor Vehicle Fleet”. Economic Synopses, # 26, Federal Reserve Bank of St. Louis, 2019. The Cyclicality of the Aging U.S. Motor Vehicle Fleet (stlouisfed.org)

[3] A “Europa dos 15” inclui Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Portugal, Reino Unido e Suécia.

[4] Global EV Outlook 2021, IEA, 2021, https://www.iea.org/reports/global-ev-outlook-2021.

[5] Três exemplos: Em 2030, para o BCG, a produção de veículos “leves” (excluindo todo tipo de vans) crescerá perto de 15% nos EEUU e na Europa, comparado a 2020, em cada um deles, atingindo 16 milhões de unidades (BCG Projections, abril de 2021 - https://www.bcg.com/publications/2021/why-evs-need-to-accelerate-their-market-penetration). De acordo com a previsão da Fitch, serão 111 milhões de veículos produzidos e, entre os quais, os automóveis de passageiros somarão 80 milhões de unidades (Global Autos Forecast Scenario, Fitch Solutions, 8 de julho de 2021). Para a IHS, serão vendidos 89 milhões de carros e a produção de veículos “leve” superará cem milhões de unidades (Pivoting to an Electrified Future, IHS-Markit, abril de 2021).

 

 

 

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