Opinião

O Pré-Sal Será Chinês?

Exportador de volumes crescentes de petróleo para um mercado estagnado, o Brasil enfrentará a concorrência dos produtores do Oriente Médio para suprir a demanda global desse combustível fóssil.

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  • Por Adilson de Oliveira

A descoberta de vastas jazidas de hidrocarbonetos em águas profundas da nossa plataforma continental transformou radicalmente o cenário energético brasileiro na década passada. Depois de quatro décadas tendo que ajustar o crescimento da economia brasileira às incertezas geopolíticas do mercado petrolífero global, esses recursos fósseis passaram a garantir a segurança energética de nossa economia. Nesse novo contexto, o Brasil poderia acelerar seu crescimento econômico sustentado sem sofrer os abalos provocados por sua dependência do comportamento do preço do petróleo no mercado internacional.

O governo da época foi mais além. Assumindo que a geopolítica favorecia a inserção do óleo brasileiro no mercado internacional, ele abandonou a preocupação com o abastecimento doméstico de energia, passando a focar sua política energética na gestão da renda petrolífera com o objetivo de maximizar sua parcela doméstica, Essa política sofreu radical transformação após a queda do governo Dilma.

A preocupação com a maximização da parcela doméstica da renda petrolífera foi abandonada, porém a percepção de que o mercado global permanece aberto para absorver o petróleo brasileiro continua vigente. O Plano Decenal de Energia (PDE) reflete essa percepção.

Esse plano adota como cenário de referência o patamar médio de 2,9% ao ano para o crescimento econômico na década atual, pouco abaixo da média mundial (3,2%) no mesmo período. Como o crescimento demográfico deve ser de 0,6% ao ano no período, o plano estima que a renda per capita dos brasileiros aumentaria 2,3% ao ano para atingir R$ 40,6 mil (em moeda de 2019) em 2030. Superada a crise do coronavirus, as reformas econômicas propostas pelo Ministério da Economia permitiriam a retomada do consumo das famílias, impulsionando a demanda doméstica de energia.

No entanto, o PDE estima que a demanda de derivados de petróleo para abastecer o mercado interno somaria 2 milhões de b/d no final do período. Como esse consumo somou 1,9 milhões de b/d em 2019, o plano sugere que ele permaneceria praticamente estagnado na presente década. E é importante notar que o PDE indica que não pode ser descartado o cenário de crescimento econômico menos intenso (1,7% ao ano) no período, dado o quadro atual de incertezas provocado pela crise do coronavirus. Caso isso venha a ocorrer, o consumo brasileiro de derivados de petróleo ficaria significativamente abaixo do verificado em 2019.[1]

Por outro lado, o PDE indica que a produção brasileira de petróleo seguirá crescendo ao longo da década atual para atingir o patamar de 5,3 milhões de b/d em 2030 (2,8 milhões em 2019). Aproximadamente 93% dessa oferta terá sua origem em reservas já identificadas na plataforma continental, em águas profundas. Como as estimativas de custos desse óleo indicam sua viabilidade econômica a preços do barril próximos dos 30 dólares, essa produção será ofertada ao mercado qualquer que seja a evolução geopolítica do mercado petrolífero global. Trocando em miúdos, as exportações brasileiras de petróleo deverão crescer significativamente na próxima década.

No cenário de referência do PDE, as exportações brasileiras de petróleo continuarão crescendo em ritmo forte durante toda a década atual. O plano estima que o volume de óleo exportado deverá passar de 1,2 milhões de b/d em 2019 para 2,7 milhões de b/d em 2030. No cenário econômico pessimista, o consumo doméstico permanecerá, na melhor das hipóteses, estagnado. Nesse cenário, as exportações poderão alcançar 3 milhões de b/d naquele ano.

Atualmente, as exportações petrolíferas brasileiras são destinadas a quatro grandes grupos de países: (i) o continente americano; (ii) a Europa Ocidental (iii) a China e (iv) o restante do continente asiático. Desde o início da década atual, a soma das parcelas de óleo exportadas para os países europeus e para o continente americano têm sido declinantes (Tabela 1). A Ásia tem sido o destino crescente das exportações brasileiras de petróleo, com clara dominância das exportações destinadas à China (63% das exportações brasileiras de petróleo em 2019).

Essas trajetórias refletem as políticas energéticas adotadas nessas macro-regiões no passado recente. A Europa Ocidental decidiu avançar celeremente na transição energética para as fontes renováveis de energia; seu consumo de derivados de petróleo deve ser declinante. No continente americano, o fracking e a exploração no pré-sal tornaram essa macro-região exportadora líquida crescente de hidrocabonetos; a demanda regional por óleo importado deve permanecer estagnada. A decisão da União Européia e da nova administração americana de acelerar o esforço global de redução das emissões globais de CO2, com o objetivo de alcançar as metas acordadas em Paris, indica que a trajetória declinante da demanda de petróleo nessas duas macro-regiões deve permanecer.

Tabela 1

Evolução das Exportações Brasileiras de Petróleo

(milhões de b/d)

Ano Americas Europa Asia sem China China TOTAL
2010 52,3% 14,3% 7,9% 25,5% 0,6
2015 46,9% 7,3% 11,6% 34,2% 0,7
2019 22,2% 7,8% 7,0% 63,0% 1,2

Fonte: Anuário estatístico da ANP

 

No entanto, a demanda petrolífera asiática permanecerá crescente, impulsionada pelas economias chinesa e indiana; as importações dessa macro-região devem seguir crescendo. Estudo recente da Equinor (Energy Perspectives 2020) confirma esse cenário.

Esse estudo buscou analisar o comportamento de longo prazo do mercado energético global. Ele está estruturado em torno de três cenários: reforma, rivalidade ou rebalanceamento. Esses cenários seriam estimulados por duas dimensões: (i) a política global de mitigação dos riscos de mudanças climáticas e (ii) a condução da geopolítica global pelos países industrializados. Essas dimensões determinam três variáveis que são decisivas nos comportamentos energéticos macro-regionais: (i) o ritmo esperado do crescimento econômico; (ii) as medidas regulatórias adotadas pelas instâncias de governança multilaterais para administar o mercado energético e (iii) as trajetórias tecnológicas escolhidas para suprir o mercado energético.

O cenário reforma visualiza essencialmente a continuidade nas políticas que vinham sendo adotadas antes da emergência da pandemia, sendo a globalização a dimensão determinante do comportamento dessas variáveis. No cenário rivalidade, a segurança energética ganha proeminência sobre a política climática assim como o protecionismo sobre a globalização. O cenário rebalanceamento assume que haverá mudanças significativas na condução da política climática para alcançar as metas de contenção das emissões de CO2 e, paralelamente, serão adotadas políticas para reduzir as disparidades econômicas globais. Esse é o cenário mais benigno para as economias em desenvolvimento, porém o de mais difícil execução, pois exige forte cooperação internacional.

O estudo estima que o ritmo de crescimento econômico global na década atual será largamente determinado pela dinâmica da economia chinesa, podendo oscilar entre 2,2% (rivalidade) e 2,5% (rebalanceamento). Portanto, significativamente abaixo do cenário proposto no PDE para a economia brasileira. O estudo da Equinor sugere que o cenário mais provável de crescimento econômico seja o menos intenso (1,7% ao ano), indicado no PDE.

As expectativas para a demanda global de petróleo são radicalmente distintas nos três cenários. No rivalidade, o consumo de petróleo cresceria pouco mais de 13% entre 2018 e 2030. Ele aumentaria levemente no cenário reforma, no mesmo período. No rebalanceamento, o consumo global cairia (Tabela 2). Nos três cenários, a demanda global de petróleo cresceria significativamente acima da oferta brasileira de petróleo estimada pelo PDE para o mercado global (224,4%) no período.

Tabela 2

Cenários para a Demanda Global de Petróleo

Cenário Reforma Rebalanceamento Rivalidade
2018 2030 2030 2030
Norte América 24,5% 21,9% 21,1% 22,3%
Demais América 6,3% 6,5% 6,9% 6,4%
Europa 13,5% 10,5% 10,1% 11,0%
Ásia industrial 9,3% 8,5% 8,0% 8,2%
China 13,9% 15,8% 15,9% 16,5%
Índia 5,2% 6,7% 7,1% 6,4%
África 4,4% 5,4% 5,8% 5,1%
Demais regiões 22,9% 24,7% 25,2% 24,2%
Total (Mb/d) 96,1 99,5 88,4 108,8

Fonte: Energy Perspectives 2020, Equinor,

 

Nos cenários da Equinor, a parcela da demanda global de petróleo da América do Norte, da Europa e da Ásia industrial será cadente. O consumo global de petróleo continuará sua trajetória de expansão apenas nos países em desenvolvimento, com destaque para a China e para a Índia. Estes cenários sugerem que o incremento nas exportações brasileiras de petróleo originadas no pré-sal serão fundamentalmente destinadas ao mercado asiático, onde terá que enfrentar a concorrência da oferta dos países da OPEP.

Essa perspectiva permite compreender o recente desinteresse demonstrado pelas grandes empresas petrolíferas européias e americanas na aquisição de novos blocos exploratórios no pré-sal brasileiro. Por outro lado, ela indica que a competição do petróleo brasileiro com o óleo produzido no Oriente Médio exigirá muita habilidade geopolítica da diplomacia brasileira para conquistar o mercado regional asiático.

A trajetória recente das exportações brasileiras de petróleo indica que o mercado chinês tem absorvido parcela crescente da oferta brasileira (Tabela 1). Os cenários da Equinor sugerem que a continuidade dessa trajetória é essencial para que o óleo produzido no pré-sal seja colocado no mercado global. A Tabela 3 oferece uma estimativa do volume crescente de óleo que teria que ser absorvido pelo mercado asiático, caso o Brasil não busque mercados alternativos para nossa produção de óleo do pré-sal.

Tabela 3

Exportações de Petróleo Brasileiro para a Ásia

Cenários mais Prováveis  (Mil b/d)

Ano Reforma Rebalanceamento Rivalidade
2019 739 739 739
2025 1276 1329 1377
2030 2296 2349 2397

Fonte: elaboração própria 2025 e 2030

 

Esse cenário indica a necessidade absoluta da atuação geopolítica da diplomacia brasileira no continente asiático, especialmente no mercado chinês, atualmente maior parceiro comercial brasileiro nessa macro-região.

 

[1] O PDE sugere também um cenário otimista em que a economia brasileira cresceria 4,1% ao ano, acima do crescimento global. Este cenário otimista é, contudo, improvável.

 

Professor Adilson de Oliveira é engenheiro químico com doutorado em Economia. Entre 1977 e 1992 foi professor da COPPE/UFRJ, onde participou da criação da Área Interdisciplinar de Energia. Em 1992, transferiu-se para o Instituto de Economia da UFRJ onde criou o grupo de economia da energia. Consultor para diversas organizações internacionais e nacionais. Atualmente é membro do Conselho Curador da UFRJ e responsável pela Cátedra Energia (Antonio Dias Leite) do Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE).

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